terça-feira, 30 de janeiro de 2007

Mangueiradas



Ele há coisas que me irritam sobremaneira (a utilização da expressão ele há, por exemplo, é uma delas).
Num dos lugares de topo estão, claro, tudo o que são sindicatos, ligas e afins, pelo seu pretenciosismo, pela sua prepotência e pela sua aparente posição de quem paira por sobre a lei, disparando petardos verbais para tudo quanto é lado.

Duarte Caldeira é presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses, ninguém sabe bem há quantos anos (sendo que este quantos é muitos), coadjuvado, na presidência da mesa de congressos, pelo omnipresente Padre Vítor Melícias.
Segundo Duarte Caldeira, ao longo dos anos, os bombeiros têm sempre razão, mesmo não a tendo. E, mais uma vez, no Domingo, dia 28 de Janeiro, os bombeiros voltaram a ter razão, no polémico incêndio de Cascais.
Segundo a Agência Lusa, Duarte Caldeira afirmou que "quando os bombeiros chegaram ao local do incêndio, que matou duas mulheres, posicionaram a viatura junto a uma boca de incêndio, cujo castelo, peça que serve para fazer ligação às mangueiras, se partiu". Em primeiro lugar, refira-se que o "quando", que Duarte Caldeira prefere não quantificar, se refere a cerca de meia hora depois de os bombeiros terem sido alertados para a ocorrência (sempre quis usar a palavra ocorrência).
Mas a parte bonita vem a seguir. Duarte Caldeira, visivelmente preocupado com a reputação dos seus bombeiros depois de ter visto as diversas reportagens televisivas sobre o tema, pensou: ora deixa lá livrá-los de mais uma. Quem vou eu culpar hoje? Vai daí, segue o primeiro projéctil para António Capucho, Presidente da Câmara de Cascais. A boca de incêndio não tinha água e a culpa é da câmara. Estão os bombeiros salvos, pensou, e já ninguém se lembra que chegaram atrasados. Azar dos diabos, porque, como se sabe, diabos e chamas estão intimamente relacionados, António Capucho contrariou Duarte Caldeira - que não era verdade, que, de facto, havia água na boca-de-incêndio. Eh lá, pensou, novamente, Duarte Caldeira, que este tipo é tramado e não se deixa levar assim às boas. Já lhe conto uma. Vai daí, segundo projéctil - de facto, a boca de incêndio tinha água, facto que não se pôde verificar porque a Câmara Municipal de Cascais, aos instalá-la, tinha colocado saídas que não se ajustavam às mangueiras habitualmente usadas pelos bombeiros. Além disso, exigia (que esta malta de sindicatos, ligas e afins não pede, nem sugere, mas exige) imediata intervenção de quem de direito porque não se compreendia que num país como o nosso situações destas ocorressem. E desta não te safas, pensou. Mas, como já vimos nesta historinha, António Capucho é levado da breca e lá veio contrariar, novamente, Duarte Caldeira - que não era verdade, que, de facto, as saídas da boca de incêndio estavam em conformidade com as mangueiras habitualmente usadas pelos bombeiros. Eh lá, pensou, ainda mais uma vez, Duarte Caldeira, que este tipo está mesmo aqui para me pisar os calos. Agora é que ele vai ver como se espingarda em várias direcções. Vai daí, ataques múltiplos, para impedir qualquer tipo de reacção - de facto, as saídas de água ajustavam-se às mangueiras, não se tivesse partido o já referido castelo. E porque é que o castelo partiu? Por falta de manutenção por parte da câmara (falta de manutenção num bairro novo?!?!?). Mas foi mais longe. Quando um jornalista lhe perguntou se a incompatibilidade de equipamentos a que antes se referira era verdade, sai a brilhante resposta: "além das bocas de incêndio existem, também, marcos de água, estes com mais saídas e chaves de manobra próprias, que por vezes não são atempadamente distribuídas aos bombeiros". Por vezes. Não necessariamente aqui. Não necessariamente neste caso. Por vezes. Brilhante, pensou, uma última vez, Duarte Caldeira, esta vai deixá-los entretidos por uns dias.
E deixou.
António Capucho vai mandar fazer cópias das ditas chaves (se existirem, no concelho dele, esses marcos e essas chaves) e mandá-las distribuir pelas corporações de bombeiros, não vá o diabo (novamente o diabo) tecê-las.
A comunicação social já anda entretida a fazer reportagens sobre as condições das diversas bocas de incêndio espalhadas pelas cidades deste país.
Das duas senhoras que morreram no incêndio ninguém mais ouvirá falar porque, como se viu, passaram a meras figurantes de uma história de contornos sombrios.
E o Super Duarte Caldeira voltou ao seu esconderijo, sempre alerta, prestes a vir socorrer os indefesos bombeiros se nova calamidade se abater sobre tão mal tratada franja da população.

Ilustração: Tom Scott, Evening Post, 21 October 1992.

1 comentário:

Sílvio Mendes disse...

Interessante ângulo da questão. Não vou comentar porque, para mal dos meus pecados, é o único que conheço.
Mas muito interessante a questão que levantas.

Nota: Este comentário perdoa as generalizações abusivas, mais entranhadas que justificadas, referidas ao longo do texto. :P