quinta-feira, 25 de janeiro de 2007

A quê deologia?



Juro que não é invenção minha. Estava no Jornal e tudo. Juro.
Costumo dizer por brincadeira que hoje em dia já tudo se compra, que só falta pagarmos tarifas por cada fatia de oxigénio que comemos. Mas , oh desgraça, era mesmo por brincadeira. Nunca pensei ter tanta razão.
Então não é que agora também se compram pessoas para participarem em manifestações, sejam elas quais forem, desde que se pague bem. Ao nível que o sonambulismo das causas e ideologias chegou. A notícia vinha na última página do ainda-Público de dia 24 de Janeiro e reporta uma originalidade de um site de aluguer alemão, o Erento. Entre outras surpresas, pode ler-se isto:

«Tem uma causa justa para protestar, mas não tem quem o acompanhe? Não há problema: o site alemão Erento tem para alugar mais de 300 manifestantes. Pode ser à hora ou ao dia»

«Tem para oferecer voluntários de todas as idades e vindos de toda a Alemanha, para participar em concentrações sociais ou políticas, ou em acções comerciais, como figurantes pagos para fazerem claque durante operações de promoção»

«Os manifestantes são alugados a preços variáveis, entre os dez e os 30 euros por hora ou 145 euros por dia. Há um Curriculum Vitae de cada um, com as suas características e uma fotografia: lá está o peso, a altura, as línguas que falam ou escrevem»

Ora, para parar com as citações secas, diz-se no artigo que tudo começou numa iniciativa da Federação Nacional dos Médicos, em Dezembro de 2006, que pagou a 170 desempregados ou estudantes para se juntarem a uma concentração em frente do parlamento de Berlim. O porta-voz do evento não via, na altura, o mais pequeno problema em investir cinco mil euros para inventar manifestantes. Argumento: «Não era uma manifestação, mas uma operação de relações públicas». Tão cedo não esquecerei a frase: «Não era uma manifestação, mas uma operação de relações públicas». Muito bem.
A verdade é que a ideia pegou. E temos hoje um site com mais de 300 candidatos prontos para irem para a rua, apoiar tudo o que tem bandeiras e mexe. Ainda nenhuma candidato havia sido alugado até à data do texto, é certo, mas talvez seja apenas uma questão de tempo. Curioso talvez possa ser saber o que pensam os próprios falsos sobre a actividade de venda de alma a que se submetem:

Um: «Para mim é um trabalho como outro qualquer, mas compreendo os que estão reticentes, porque é preciso mostrar a cara e há o risco de ser filmado [por câmaras de televisão]»
(comentário: Admirável! Afinal ainda há um pouco de consciência social: é preciso mostrar a cara, o que é um risco. Isto era bom se pudessemos vir mascarados, aí sim.)

Dois: «O dinheiro é bem-vindo, desde que aqueles que me pagam correspondam à minha ética»
(comentário: se a tua ética é receber, sossega. Correspondem de certeza)

Disse que tão cedo não esqueceria que
«não era uma manifestação, mas uma operação de relações públicas», não era, como a vida, como uma sessão parlamentar 'não é uma sessão parlamentar, mas uma operação de relações públicas', como a vida, como a amizade 'não é... mas uma operação de relações públicas', e a vida, a vida, a vida.
Isto que diferencia o humano de um rinoceronte, esta coisa dos valores e das ideologias, não devia ser só para televisão ver. Porque a televisão não vale de nada, enquanto insistirmos em arrancar o coração dos homens e substitui-lo por imagens. Porque as imagens não valem de nada quando 'não são imagens, mas operações de relações públicas'.


Ilustração: Empty Head, por Mark A. Hicks

10 comentários:

Rui Afonso disse...

Eu estive a ler o mesmo e gargalhei até à exaustão. Mas isto não é novidade, amigo Sílvio. Neste rectângulo à beira-mar plantado, por exemplo, alguns partidos políticos, sindicatos e afins fazem exactamente o mesmo. Só que não pagam...

Sílvio Mendes disse...

Sim, essa noção também é importante de referir. Mas a originalidade aqui prende-se, sobretudo, em fazer disso profissão. Uma forma assumida de corrupção de almas.

Eu já vinha dizendo também que as manifestações no formato clássico eram uma forma de protesto com cada vez menos visibilidade e eficácia. Já ninguém, dentro dos gabinetes de poder, a leva a sério. O que é, por uma lado, triste. E, por outro, compreensível, à luz de tamanhas falsidades.

A quem lhe resta alma e ideal, sobra-lhe também e hipótese de tentar formas originais de fazer passar a mensagem. O que é diferente de um acto desmesurado e técnico de relações públicas.

Anónimo disse...

brutal. mas, de alguma forma, não surpreende.

Anónimo disse...

Compram-se pessoas, mas será que se compram ideais? Não me parece. É o chamado “easy cash”, tão comum nesta “nossa” sociedade de consumo. Concordo plenamente com aquilo que escreves, mas é preciso salvaguardar que é apenas o reflexo da sociedade.

Sílvio Mendes disse...

Salvaguardar?
Mais ainda?

Não percebo.

Quanto aos ideais, há uma dificuldade cada vez maior em comprá-los, porque são uma raridade nos dias que correm.

Salvaguardar, tudo bem. Mas a questão é: com que objectivo?

Alexandre Carvalho disse...

Quando disse para salvaguardar, estava a remeter-me ao facto de a aquisição de pessoas para as manifestações ser, na minha opinião, o reflexo daquilo que é hoje a nossa sociedade: Um combinado de pessoas, a maior parte delas desprovidas de qualquer opinião pública, embevecidas por aquilo que o dinheiro fomenta. O consumismo.

Rui Afonso disse...

Mas, curiosamente, este marchar sem ideais, agora por dinheiro, começou por ser um marchar, também sem ideais, de seguidismo de massas.

Sílvio Mendes disse...

E podemos recuar séculos na história e enquadrarmos a imagem das carpideiras.
(só para apimentar)

Sílvio Mendes disse...

Oh Alex,
só para que não sobre nenhuma dúvida, o que eu queria dizer com a minha reacção é que se torna absolutamente evitável e desnecessário salvaguardar tão óbvia evidência. Tão desnecessário quanto esta redundância que acabo de usar.

Ora, se é uma análise de um fenómeno recente, obviamente que esse, salvo raras excepções, só pode ser devidamente justificado pelo contexto em que se insere - esse tal "sinal dos tempos". Daí a minha apreensão. Não é necessário salvaguardar, no final de cada frase, que "não sei se repararam mas eu acabei de proferir uma frase". Era só isso.
Porque não há grandes probabilidades de que as pessoas, ao ouvirem-te, pensassem: "Ah, e eu que ia jurar que tinhas proferido um guarda-chuva". Tal como não há grande probabilidade de os indivíduos, ao lerem este texto (sem a tua salvaguarda), pensassem: "Olha, queres ver que este fenómeno é um sinal da Era dos Dinossauros.".

Daí as minhas questões.
Quanto ao resto, como facilmente se percebe, estamos em pleno acordo.
Um abraço.

Anónimo disse...

Estou esclarecido meu caro silvio!

Abraços!