quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

O Centenário




Nazaré, 22 de Maio de 1949.


Na praia, cheia de nevoeiro e de mar. Ao largo, sete traineiras e dois batelões. Os barcos, parados, esperam por uma aberta das ondas. As traineiras cirandam como cadelas antes de caírem no ninho. Por fim começa o encalhe. É a mesma manobra de sempre, o mesmo segundo de sorte, e o mesmo gesto do arrais, na popa do barco, a acalmar a mulherio que grita. Mas as orações de Gertrudes Morraça é que têm cada dia maior sentido. Com os pés inchados e descalços na areia molhada, vai conjurando o mal para cada embarcação. As companheiras, atrás, olham-na com respeito. E ela alarga os braços, e como se remasse com as mãos, olhos fitos no barco que avança, vai-o encomendando

Ao santíssimo Sacramento,
E à flor donde nasceu,

E à hóstia consagrada
E à cruz onde morreu.


A artilharia toda. E um a um vai-os safando. Ao cabo de cada triunfo, ela própria esclarece o auditório:
- Ai que milagre, alminhas do Senhor! Ai que milagre, virgenzinha!
Não tem marido, nem filhos. Morreram todos. Por isso move-a apenas a convicção do seu poder, a fé no seu destino mágico. À semelhança dos primeiros sacerdotes, que tiveram a coragem de dizer aos restantes homens da tribo que acabavam de falar com Deus, e se transformavam ipso facto em chefes ungidos, eleitos pelo sobrenatural, também a Gertrudes tem a audácia de se pôr à frente das outras e tomar sobre os ombros a responsabilidade de falar em nome do céu.
Chego-me perto dela e digo-lhe baixinho:
- Vocemecê dá cabo do coração...
E ela:
- Se eu não rezasse por todos, que havia de ser destes desgraçados?

Ao Santíssimo Sacramento

E à flor que nasceu...


Agora é a vez da traineira Sol Divino. Uma onda dá-lhe de través, e é por um triz que se não afunda. Ergue-se um clamor de desespero em todo o areal. Rostos curtidos de sol e de salmoira, que até ali pareciam de atanado, animam-se num expressivo e virginal sofrimento.
Mas a pitonisa vela:

E à história consagrada

E à cruz onde morreu...

Mais humana e mais prática, a mulher dum que vem dentro da casca de noz que se debate nas ondas, solitária e desesperada, adianta-se então, ultrapassa a inspirada, e clama:

Rema, pescador,
Que lá vem Jesus
De braços abertos
Pregados na cruz!

E ficam no ar, a toldar a manhã, as duas imagens contraditórias: aquele Cristo imobilizado no madeiro, e aquele pescador a remar, a remar...


Miguel Torga, Diário V (4ª edição), Coimbra (1973).
Ilustração: "Pescadores de Blanes; Jose Luis Cuevas


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